sábado, 30 de março de 2013

Transexualimo e os distúrbios da diferenciação sexual


Samie Carvalho, autora dos quadrinhos “Sasha, a Leoa de Juba” [http://sashalioness.tumblr.com/] , contou recentemente em seu blog “La Petite Fille de La Mer” [http://lapetitesirena.tumblr.com/post/40172251128/o-homem-operado], em resposta a um comentário de um leitor, um pouco da história do seu desenvolvimento transexual.

Ela também fala um tanto sobre a Biologia da diferenciação sexual, com alguns conceitos que precisam ser corrigidos. Mas em geral, recomendo a leitura do interessante depoimento – e certamente dos quadrinhos da Lioness.

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A diferenciação sexual na espécie humana acontece a partir da 8ª a 9ª semana de gestação. Quando o embrião tiver um cromossomo Y, a gônada primordial vai se diferenciar em testículo; se não tiver, em ovário.

O testículo produz dois hormônios fundamentais para a diferenciação da genitália interna e externa. O hormônio antimülleriano (HAM) provoca atrofia do ducto “feminino” (o qual, caso não atrofie, dá origem a vagina, útero e trompas); e a testosterona provoca a estabilização do ducto “masculino” (e dá origem a epidídimo, vasos deferentes, vesícula seminal e ducto ejaculatório).

No caso de o embrião não ter o cromossomo Y, a gônada se diferencia como ovário, não produz HAM e testosterona, e a diferenciação acontece ao contrário – o ducto “feminino” prossegue o desenvolvimento e o ducto “masculino” atrofia.

(eu coloquei “masculino” e “feminino” entre aspas porque esses não são os nomes científicos dos ductos, e sim de Wolff e de Müller, respectivamente)

As genitálias externas masculina e feminina também têm os seus órgãos análogos. A glande e o clitóris têm a mesma origem; como o corpo do pênis e os pequenos lábios; e a bolsa escrotal e os grandes lábios. A diferenciação para a genitália externa masculina – aumento de tamanho da glande; aumento do tamanho e fusão do falo; fusão da bolsa escrotal; e extensão da uretra por dentro do falo até a ponta da glande – acontece sob forte estímulo androgênico, principalmente da forma mais potente de testosterona, a di-hidrotestosterona (DHT).

[então, diferente do que a Samie diz, não é o corpo da mãe e a placenta que imprimem no embrião o sexo reprodutivo, e sim a gônada do próprio embrião; o que a placenta produz, e para os dois sexos igualmente, é a gonadotrofina coriônica (HCG), que estimula a gônada a produzir o hormônio, seja testosterona no caso masculino, seja estrogênio no sexo feminino; e apenas até o momento em que a hipófise do embrião se desenvolve e passa a regular a função da gônada]

Existe uma série de condições genéticas em que um embrião XY não produz testosterona suficiente, ou ela não funciona adequadamente, para desenvolver a genitália interna masculina e virilizar a genitália a genitália externa; e vice-versa, outras tantas condições genéticas em que um embrião XX produz excesso de androgênios suficiente para virilizar a genitália externa.

Em alguns casos, a transformação é completa, e o resultado é absolutamente idêntico a alguém do sexo oposto ao cromossômico. É o caso, por exemplo, da insensibilidade completa aos androgênios. A pessoa é geneticamente XY, desenvolve testículo, produz testosterona, mas ela não funciona nem um pouco. O resultado externo é uma menina exatamente igual a outras meninas XX. E que só vai ser diagnosticada quando entrar na puberdade, desenvolver mamas e outros caracteres sexuais secundários femininos, o tempo passar e a menstruação não vir. O médico vai pedir uma ultrassonografia pélvica, a qual não visualizará útero.

Para mais informações sobre essa síndrome: http://youtu.be/yuXL-3eoB-o

Imogen Callaway é uma inglesa portadora da síndrome, que tem publicado uma série de vídeos no YouTube contando vários aspectos da sua condição.

Em outras situações, a transformação é incompleta, e faz com que a pessoa nasça com uma genitália externa que não é típica dos sexos masculino ou feminino – uma genitália ambígua. O diagnóstico é fundamental, pois algumas doenças podem levar à morte se não forem precocemente tratadas, como a hiperplasia adrenal congênita; e também, de posse do diagnóstico, pode-se prever como a pessoa vai evoluir e ajudar na designação de gênero (que não depende exclusivamente dos cromossomos e deve incluir tanto a opinião médica quanto a família e, dependendo da idade, a paciente).

Em algumas doenças, a redesignação de gênero pode acontecer em até 50% dos casos, como na deficiência de 5a redutase. Nesses casos, por falta da transformação da testosterona em sua variante mais potente, o embrião XY desenvolve a genitália externa pouco virilizada, e às vezes completamente feminina. O sexo de criação na infância é geralmente feminino, mas na puberdade, com o aumento exponencial dos hormônios masculinos, a genitália ganha aspecto masculino. Metade dos pacientes opta pela permanência no sexo feminino, e está indicada a retirada dos testículos e reposição de estrogênio; e metade opta pela redesignação para o sexo masculino, e passa pela transformação cirúrgica definitiva da genitália externa e reposição de testosterona.

Ainda não existe um consenso sobre a origem biológica da transexualidade. Mas, por definição, não se pode chamar de transexual alguém que, com o passar do tempo, teve seu gênero redesignado em decorrência de um distúrbio da diferenciação sexual.

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Variações no número de cromossomos sexuais são uma outra questão, e que, na ausência de outras alterações genéticas, seguem exatamente o que foi descrito.

Embriões 45 X, em que o segundo cromossomo sexual está faltando, se desenvolvem no sexo feminino (e têm o diagnóstico de síndrome de Turner), assim como os 47 XXX; embriões 47 XXY, portadores de síndrome de Klinefelter (e outras combinações que incluem pelo menos um Y), se desenvolvem no sexo masculino. Todos eles desenvolvem uma gônada disfuncional, que mais tarde vai fazer com que eles não entrem espontaneamente na puberdade.

[diferente do que a  Samie diz, um embrião XXY não foi fertilizado por dois espermatozoides, e sim ou o óvulo ou o espermatozoide ficou com o par de cromossomos sexuais, em vez de com apenas um – ou seja, um óvulo XX foi fertilizado por um espermatozoide Y, ou um óvulo X foi fertilizado por um espermatozoide XY].

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Sobre o caso da Samie, ela não fala em um diagnóstico médico, mas pela forma como ela descreve o seu desenvolvimento puberal eu questionaria se ela não tem uma forma parcial de síndrome de insensibilidade androgênica. Talvez ela já tenha passado pelos exames necessários para o diagnóstico, talvez alguém já tenha chegado a uma conclusão sobre se sim ou se não, ou se outra coisa. Mas caso ela tenha um distúrbio da diferenciação sexual, é errado (medicamente) chamá-la de transexual. É compreensível que ela se sinta assim, que ela tenha afinidade com o discurso transexual, que ela tenha sofrido a série de preconceitos que @s transexuais sofrem, mas (medicamente) isso tem outro nome.

segunda-feira, 11 de março de 2013

Um diagnóstico digno de House MD

Fui chamado para responder um parecer sobre uma menina de 2 anos com aparecimento precoce ds pelos pubianos internada no CTI Pediátrico do Hospital Cardoso Fontes. Em princípio o caso não me chamou à atenção, primeiro porque tinha ares de não ser nada mais sério; e segundo porque ela tinha uma doença neurológica grave e a pubarca era o menor dos seus problemas.

Nesse ínterim, chega um menino recém-nascido vindo do Centro Cirúrgico. Eu olho com olhar mais de pena que de médico, que um bebezinho não deveria passar por esse tipo de coisa, não assim tão logo depois de ter saido da barriga da mãe.

- O que ele tem? - eu perguntei.
- Ele nasceu com gastrosquise.

Gastrosquise é um defeito congênito no fechamento da parede abdominal, em que o bebê nasce com as vísceras expostas.

O olhar de pena foi descansar e o de médico voltou.
À primeira vista, parecia ser grande para um recém-nascido de menos de uma semana. Peguei o prontuário para checar as informações,e de fato ele havia nascido a termo e grande para a idade gestacional.

Pousei o prontuário sobre a mesa e profetizei:

- Cuidado com a hipoglicemia.

A partir daí, não sei; não sei se não deram atenção porque até então ele ainda não havia dado sinais de hipoglicemia, não sei se acharam que eu era maluco de dar pitaco em paciente alheio... só sei queno dia seguinte recebi a ligação no ramal da minha sala de ambultório.

- Flavio, o que é que ele tem? Ele teve hipoglicemia a noite toda e a gente teve dificuldade de reverter, mesmo aumentando a taxa de infusão de glicose. Como você sabia disso?
- Ele tem síndrome de Beckwith-Wiedemann.
- Ahnnn??

Recém-nascido grande para a idade gestacional, defeito de fechamento de parede abdominal, macroglossia [língua grande, que mal cabe na boca], hipoglicemia neonatal de difícil controle [e que geralmente melhora com o tempo], hemi-hipertrofia [crescimento assimétrico do corpo], visceromegalias [aumento de fígado, baço, pâncreas, rins, adrenais], tendência a desenvolvimento de neoplasias [tumor de Wilms, hepatoblastoma].

Ele tinha tudo que um recém-nascido podia ter. Era um caso típico, completo. Só precisava saber que aquilo tudo era um problema só e tinha um nome. Um nome composto, em homenagem ao pediatra geneticista alemão Hans-Rudof Wiedemann e ao patologista norte-americano John Bruce Beckwith, que descreveram a síndrome de forma independente em meados dos anos 1960.

Recebeu alta dali a alguns dias e eu o encaminhei para o ambulatório de Genética do Hospital Pedro Ernesto, onde talvez esteja sendo acompanhado até o momento.

domingo, 10 de março de 2013

Por que o hormônio de crescimento é produzido à noite?

Em uma das aulas que eu venho apresentando, um aluno pós-graduando perguntou por que a dose de hormônio de crescimento deve ser dada à noite.

A resposta não é difícil: porque é à noite que fisiologicamente nós temos maior frequência de pulsos de GH, e devemos tentar mimetizar o máximo possível a Fisiologia.

Eu gosto de crianças porque elas fazem muitas perguntas e não se satisfazem com a resposta fácil. Às vezes os pais reclamam do que eu mais gosto nelas, os por quês e por quês intermináveis, e que fazem a gente ou pensar para responder, ou dizer que é assim porque é, pronto e acabou. Para os adultos costuma bastar a primeira resposta.

Sim, à noite temos mais pulsos de secreção de GH. Mas... por quê?

Ele não perguntou, mas como eu no lugar dele teria perguntado, tentei responder.

Mais uma vez, existe uma resposta fácil: porque à noite, no período de jejum prolongado, precisamos dos hormônios contra-insulínicos – glucagon, cortisol e GH; menos a adrenalina – em atividade para manter a glicemia e o fornecimento de substrato energético para o sistema nervoso central.

Nós temos o hormônio de estoque energético, a insulina; e os hormônios que disponibilizam esse estoque para um objetivo específico.

O glucagon é o hormônio contra-insulínico por natureza, tudo que a insulina faz ele faz o contrário, e tem como objetivo o controle da glicose e a prevenção de hipoglicemia.

A adrenalina é o hormônio do estresse exógeno, da luta ou fuga, do exercício físico, e fornece substrato energético para a atividade muscular.

O cortisol é o hormônio do estresse endógeno, da modulação imunológica, e provê energia para a atividade das células inflamatórias.

E o hormônio de crescimento, por fim, é o hormônio do... crescimento; não só estatural, mas também ósseo, cartilaginoso e muscular. Ele faz catabolismo das reservas energéticas para servir como matéria-prima para o anabolismo somático. Assim, aumenta a produção hepática de glicose, aumenta a produção e liberação de ácidos graxos pelo tecido adiposo, e aumenta a síntese protéica muscular. Daí os efeitos de diminuir a massa gorda e aumentar a massa magra durante o tratamento, tanto em casos de doenças em que o uso da medicação é aprovado como de doping esportivo.

Como seria impossível que o músculo hipertrofiasse durante a sua atividade, é interessante que o GH seja produzido (ou administrado) em um período de baixa atividade muscular. Ou seja, o sono.

sábado, 9 de março de 2013

Efeitos adversos do rhGH em crianças


Por que se perde peso


–... é que o diabético urina músculo, enquanto o atleta transpira e expira gordura.

Estava conversando sobre a diferença entre a perda de peso de um diabético descompensado e a de alguém que faça exercício, não necessariamente um atleta profissional, e a frase saiu meio assim de bate-pronto. E, figuras de linguagem à parte, é exatamente o que acontece quando se emagrece por doença, no caso o dia...


1) O diabético urina músculo.

No diabetes insulinopênico (tipo 1 ou tipo 2 com falência de secreção de insulina), a glicose não consegue deixar o sangue e entar nas células, seja para ser estocada ou queimada para a produção de energia. Sem receber o cmbustível do sangue, as células passam a fabricá-lo a partir do que elas têm: gordura ou proteína. Nesse proesso, ocorr a produção de glicose e de corpos cetônicos; os quais em excesso, serão eliminados pela urina.

1g de glicose = 4 kcal

Se um diabético produzir 3000 mL de urina em 24h, com 200 mg/dL de glicose, em uma dia ele elimina 60g de glicose (6 colheres de sopa), ou 240kcal. Mais os corpos cetônicos, outras tantas calorias. Equivalente a uma corridinha considerável.

2) O atleta transpira e expira gordura.

O exercício, especialmente aeróbico, provoca liberação de adrenalina, que vai promover produção e liberação de glicose pelo fígado e de ácidos graxos pelo tecido adiposo para utilizaçãopelo músculo.

A queima de glicose e ácido graxos produz água, gás carbônico e energia.

A energia, além de mover as engrenagens dos músculos para produzir o movimento desejado, também se dispersa sob a forma de calor, aumentando a temperatura corporal.

Através da pele, a água é eliminada sob a forma de suor e por evaporação direta; também entra no pool de água do organismo e o excesso sai pela urina.

A freqüência respiratória aumenta para eliminar o excesso de gás carbônico produzido, bem como o vapor d’água, no ar expirado.


Ou seja, a diferença básica é que no exercício a energia potencial presente nos elementos é transformada em energia de fato, mecânica e térmica, através dos mecanismos fisiológicos de oxidação; e no diabetes, devido ao não funcionamento dos mecanismos fisiológicos, a impossibilidade de utilizar os elementos energéticos faz com que eles sejam desperdiçados in natura.

Quem sou

Flavio Moutinho Souza

Graduado em 2001 pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Residência em Endocrinologia no Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE/UERJ) entre 2002 e 2005.
Título de Especialista em Endocrinologia e Metabologia pela Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), obtido em 2005.
Certificado de Área de Atuação em Endocrinologia Pediátrica pela SBEM, obtido em 2006.

Professor substituto de Endocrinologia, DCM/FCM/UERJ, de 2005 a 2006.
Professor substituto de Fisiologia Endócrina, DCF/IBRAG/UERJ, de 2007 a 2008.
Médico dos ambulatórios de Endocrinologia e Endocrinologia Pediátrica do Hospital Federal Cardoso Fontes (HFCF) desde 2006, concursado pelo Ministério da Saúde.
Preceptor em Endocrinologia Pediátrica da Residência Médica de Pediatria do HFCF desde 2006.

Às vezes eu me pego pensando e pensando sobre um assunto, e muitas dessas vezes eu não tenho com quem compartilhar meus pensamentos, e confirmar se eu estou certo, ou descobrir que estou errado - porque eu não tenho pretensão de estar certo 100% do tempo, mas gosto de aprender quando não estou.