Samie Carvalho, autora dos
quadrinhos “Sasha, a Leoa de Juba” [http://sashalioness.tumblr.com/] , contou
recentemente em seu blog “La Petite Fille de La Mer” [http://lapetitesirena.tumblr.com/post/40172251128/o-homem-operado],
em resposta a um comentário de um leitor, um pouco da história do seu desenvolvimento
transexual.
Ela também fala um tanto sobre a Biologia
da diferenciação sexual, com alguns conceitos que precisam ser corrigidos. Mas
em geral, recomendo a leitura do interessante depoimento – e certamente dos
quadrinhos da Lioness.
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A diferenciação sexual na espécie
humana acontece a partir da 8ª a 9ª semana de gestação. Quando o embrião tiver
um cromossomo Y, a gônada primordial vai se diferenciar em testículo; se não
tiver, em ovário.
O testículo produz dois hormônios
fundamentais para a diferenciação da genitália interna e externa. O hormônio
antimülleriano (HAM) provoca atrofia do ducto “feminino” (o qual, caso não
atrofie, dá origem a vagina, útero e trompas); e a testosterona provoca a
estabilização do ducto “masculino” (e dá origem a epidídimo, vasos deferentes,
vesícula seminal e ducto ejaculatório).
No caso de o embrião não ter o
cromossomo Y, a gônada se diferencia como ovário, não produz HAM e
testosterona, e a diferenciação acontece ao contrário – o ducto “feminino” prossegue
o desenvolvimento e o ducto “masculino” atrofia.
(eu coloquei “masculino” e
“feminino” entre aspas porque esses não são os nomes científicos dos ductos, e
sim de Wolff e de Müller, respectivamente)
As genitálias externas masculina
e feminina também têm os seus órgãos análogos. A glande e o clitóris têm a
mesma origem; como o corpo do pênis e os pequenos lábios; e a bolsa escrotal e
os grandes lábios. A diferenciação para a genitália externa masculina – aumento
de tamanho da glande; aumento do tamanho e fusão do falo; fusão da bolsa
escrotal; e extensão da uretra por dentro do falo até a ponta da glande –
acontece sob forte estímulo androgênico, principalmente da forma mais potente
de testosterona, a di-hidrotestosterona (DHT).
[então, diferente do que a Samie
diz, não é o corpo da mãe e a placenta que imprimem no embrião o sexo reprodutivo,
e sim a gônada do próprio embrião; o que a placenta produz, e para os dois
sexos igualmente, é a gonadotrofina coriônica (HCG), que estimula a gônada a
produzir o hormônio, seja testosterona no caso masculino, seja estrogênio no
sexo feminino; e apenas até o momento em que a hipófise do embrião se
desenvolve e passa a regular a função da gônada]
Existe uma série de condições
genéticas em que um embrião XY não produz testosterona suficiente, ou ela não
funciona adequadamente, para desenvolver a genitália interna masculina e virilizar
a genitália a genitália externa; e vice-versa, outras tantas condições
genéticas em que um embrião XX produz excesso de androgênios suficiente para
virilizar a genitália externa.
Em alguns casos, a transformação
é completa, e o resultado é absolutamente idêntico a alguém do sexo oposto ao
cromossômico. É o caso, por exemplo, da insensibilidade completa aos
androgênios. A pessoa é geneticamente XY, desenvolve testículo, produz
testosterona, mas ela não funciona nem um pouco. O resultado externo é uma
menina exatamente igual a outras meninas XX. E que só vai ser diagnosticada
quando entrar na puberdade, desenvolver mamas e outros caracteres sexuais
secundários femininos, o tempo passar e a menstruação não vir. O médico vai
pedir uma ultrassonografia pélvica, a qual não visualizará útero.
Para mais informações sobre essa
síndrome: http://youtu.be/yuXL-3eoB-o
Imogen Callaway é uma inglesa
portadora da síndrome, que tem publicado uma série de vídeos no YouTube
contando vários aspectos da sua condição.
Em outras situações, a transformação
é incompleta, e faz com que a pessoa nasça com uma genitália externa que não é
típica dos sexos masculino ou feminino – uma genitália ambígua. O diagnóstico é
fundamental, pois algumas doenças podem levar à morte se não forem precocemente
tratadas, como a hiperplasia adrenal congênita; e também, de posse do diagnóstico,
pode-se prever como a pessoa vai evoluir e ajudar na designação de gênero (que
não depende exclusivamente dos cromossomos e deve incluir tanto a opinião
médica quanto a família e, dependendo da idade, a paciente).
Em algumas doenças, a
redesignação de gênero pode acontecer em até 50% dos casos, como na deficiência
de 5a redutase. Nesses casos, por falta
da transformação da testosterona em sua variante mais potente, o embrião XY
desenvolve a genitália externa pouco virilizada, e às vezes completamente
feminina. O sexo de criação na infância é geralmente feminino, mas na
puberdade, com o aumento exponencial dos hormônios masculinos, a genitália
ganha aspecto masculino. Metade dos pacientes opta pela permanência no sexo
feminino, e está indicada a retirada dos testículos e reposição de estrogênio;
e metade opta pela redesignação para o sexo masculino, e passa pela
transformação cirúrgica definitiva da genitália externa e reposição de
testosterona.
Ainda não existe um consenso
sobre a origem biológica da transexualidade. Mas, por definição, não se pode chamar
de transexual alguém que, com o passar do tempo, teve seu gênero redesignado em
decorrência de um distúrbio da diferenciação sexual.
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Variações no número de
cromossomos sexuais são uma outra questão, e que, na ausência de outras
alterações genéticas, seguem exatamente o que foi descrito.
Embriões 45 X, em que o segundo
cromossomo sexual está faltando, se desenvolvem no sexo feminino (e têm o
diagnóstico de síndrome de Turner), assim como os 47 XXX; embriões 47 XXY, portadores
de síndrome de Klinefelter (e outras combinações que incluem pelo menos um Y), se
desenvolvem no sexo masculino. Todos eles desenvolvem uma gônada disfuncional,
que mais tarde vai fazer com que eles não entrem espontaneamente na puberdade.
[diferente do que a Samie diz, um embrião XXY não foi fertilizado
por dois espermatozoides, e sim ou o óvulo ou o espermatozoide ficou com o par
de cromossomos sexuais, em vez de com apenas um – ou seja, um óvulo XX foi
fertilizado por um espermatozoide Y, ou um óvulo X foi fertilizado por um espermatozoide
XY].
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Sobre o caso da Samie, ela não
fala em um diagnóstico médico, mas pela forma como ela descreve o seu desenvolvimento
puberal eu questionaria se ela não tem uma forma parcial de síndrome de
insensibilidade androgênica. Talvez ela já tenha passado pelos exames
necessários para o diagnóstico, talvez alguém já tenha chegado a uma conclusão
sobre se sim ou se não, ou se outra coisa. Mas caso ela tenha um distúrbio da
diferenciação sexual, é errado (medicamente) chamá-la de transexual. É
compreensível que ela se sinta assim, que ela tenha afinidade com o discurso
transexual, que ela tenha sofrido a série de preconceitos que @s transexuais
sofrem, mas (medicamente) isso tem outro nome.